Conotação: Linguagem Figurada

A força da metáfora
Ao concentrar significados, figura de linguagem adquire um valor argumentativo intenso
José Luiz Fiorin 

Tomemos um exemplo de uma metáfora banal. No cap. III de A Intrusa, de Júlia Lopes de Almeida, a personagem Argemiro faz o seguinte comentário sobre o sogro:

“- Não é homem que discuta fatos consumados. Depois, está velho e é amigo do repouso… Fez-se botânico, para entreter os ócios da chácara. Teve uma mocidade tempestuosa; a mulher não foi feliz; agora então, para compensá-la, dá-lhe toda a soberania e é um cordeiro. O bom velho fez esquecido o mau rapaz…”.

Não pertinente
O que nos interessa é a afirmação de que agora ele é um cordeiro. Trata-se, como se percebe, de uma predicação não pertinente. Afinal, um homem não é um cordeiro. Qual é o mecanismo para estabelecer a propriedade semântica dessa frase? O termo “cordeiro” possui, entre outros, os seguintes traços semânticos: mamífero, ovino, lanoso, macho, não adulto; a expressão “meu sogro” tem, entre outros, os traços semânticos: mamífero, humano, macho, adulto. Os dois termos apresentam uma intersecção sêmica, traços comuns a ambos: pacífico, cordato.

A metáfora é uma concentração semântica. No eixo da extensão, ela despreza uma série de traços e leva em conta apenas alguns traços comuns a dois significados que coexistem. Com isso, dá concretude a uma ideia abstrata (no caso, a de mansidão do sogro), aumentando a intensidade do sentido. Poder-se-ia dizer que o sentido torna-se mais tônico. Ao dar ao sentido tonicidade, a metáfora tem um valor argumentativo muito forte. O que estabelece uma compatibilidade entre os dois sentidos é uma similaridade, ou seja, a existência de traços comuns a ambos. A metáfora é, pois, o tropo em que se estabelece uma compatibilidade predicativa por similaridade, restringindo a extensão sêmica dos elementos coexistentes e aumentando sua tonicidade.

A metáfora não é um tropo apenas da linguagem verbal. Ela aparece em outras linguagens, como, por exemplo, a visual. No logotipo da Good Year, fábrica de pneus, aparece um pé dotado de asas para metaforizar a velocidade do produto fabricado. O 22º Anuário da Criação traz uma publicidade da Parati GTI (1997, p. 115). O texto diz “Nova Parati GTI. Agora com motor de 16 válvulas”. Mostra-se uma imagem de uma Parati num estacionamento, cercada por tartarugas “estacionadas” nas outras vagas. A similaridade que faz coexistirem os significados de tartarugas e outros carros, que não a nova Parati, é a lentidão. O artista de rua italiano Blu realizou em Berlim esta pintura. O bloco de gelo transformando-se em água na parte superior da ampulheta e uma cidade sendo submergida na parte inferior metaforizam a destruição da civilização, com o tempo, pelo aquecimento global, a destruição da cultura pela natureza. O derretimento da pedra de gelo na parte superior da ampulheta é idêntico à liquefação das geleiras; a submersão de uma cidade na parte inferior é análoga às inundações das cidades costeiras provocadas pelo aumento do nível dos oceanos.

Desenho do italiano Blu em Berlim, Alemanha: metáfora do aquecimento 

 

Alegoria
As metáforas podem ter a dimensão de uma palavra, de uma frase ou de um texto. José Eduardo Agualusa, em seu livro Barroco Tropical, tem uma frase que ele próprio analisa como metáfora:

“Vi cair o belo palácio de Dona Ana Joaquina, a golpes de camartelo, para ser substituído por uma réplica em mau betão, e achei que era uma metáfora dos novos tempos o velho sistema colonial e escravista ser substituído por uma réplica ridícula em nefasto calão dos musseques” (São Paulo: Cia das Letras, 2009, p. 88-89).

Chamamos alegoria um texto que constitui em sua integralidade uma metáfora. São exemplos as fábulas, os apólogos, a parábolas, etc. Eis uma fábula de Esopo, “O asno e a carga de sal”:

“Um asno carregado de sal atravessava um rio. Um passo em falso e ei-lo dentro da água. O sal então derreteu e o asno se levantou mais leve. Ficou todo feliz. Um pouco depois, estando carregado de esponja às margens do mesmo rio, pensou que se caísse de novo ficaria mais leve e caiu de propósito nas águas. O que aconteceu? As esponjas ficaram encharcadas e, impossibilitado de se erguer, o asno morreu afogado.

Algumas pessoas são vítimas de suas próprias artimanhas.”

A moral da fábula é uma leitura da metáfora narrada pelo texto figurativo: o asno é o símile do homem vitimado por sua tentativa de ser esperto e levar vantagem em tudo.

A catacrese é uma metáfora lexicalizada. Ela já pertence ao léxico da língua e, então, no sentido próprio deixa de ser um tropo. No entanto, mesmo com essas metáforas cristalizadas, um poeta como José Paulo Paes constrói, no livro É Isso Ali, um poema metaforizando as razões da língua (“Inutilidades”):

Ninguém coça as costas da cadeira.
Ninguém chupa a manga da camisa.
O piano jamais abana a cauda.
Tem asa, porém não voa, a xícara.
De que serve o pé da mesa se não anda?
E a boca da calça se não fala nunca? Nem sempre o botão está em sua casa.
O dente de alho não morde coisa alguma.
Ah! se trotassem os cavalos do motor…
Ah! se fosse de circo o macaco do carro…
Então a menina dos olhos comeria
Até bolo esportivo e bala de revólver.

José Luiz Fiorin é professor do Departamento de Linguística da USP e autor de As astúcias da enunciação

Fonte: Revista Língua Portuguesa, 2011.Disponível em: <http://revistalingua.uol.com.br/textos.asp?codigo=12219. Acesso 07 fev.2011,16:0o:40

Publicado por allealves

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